Multimistura: vilã ou aliada no combate à desnutrição infantil?

Publicado em 28/09/2018

Desde 1985 a multimistura, composta por 70% de farelos de arroz ou trigo, 15% de pó de folhas de mandioca e 15% de pó de sementes (gergelim ou abóbora), é utilizada, especialmente pela Pastoral da Criança para tentar combater a desnutrição infantil.

Isso porque, acreditava-se que a mistura de farelos e pós teria um alto valor nutritivo, além de ter um baixo custo e preparo rápido. Além disso, também se propagou durante anos a ideia de que o uso em doses pequenas, mas constantes, forneceria nutrientes considerados indispensáveis para promover o bom crescimento da criança e do feto, aumentando a resistência a infecções, diminuindo diarreias, reduzindo o risco de doenças respiratórias, elevando a produção de leite materno e combateria ainda a anemia e a desnutrição infantil.

Mas a mistura famosa nos anos 70 e 80, por sua fórmula barata e eficiente para salvar milhares de crianças e adultos também da fome, virou alvo de polêmica entre especialistas. Alguns nutricionistas defendem o uso da multimistura, que acontece até hoje em muitas regiões do país. Mas a Sociedade Brasileira de Pediatria divulgou um parecer contrário à utilização da fórmula.

No documento, o Departamento Científico de Nutrologia da SBP, entre outros pontos, afirma que a mistura apresenta limitações nutricionais, toxicológicas e antinutricionais. O parecer diz:

  1. Limitações do ponto de vista nutricional: elevado conteúdo de ácido fítico (5 a 6% no farelo de arroz) – o ácido fítico é um forte agente quelante dos cátions mono e divalentes, com os quais forma complexos insolúveis nos alimentos, em condições de pH fisiológico. Muitos estudos mostram a relação inversa que existe entre o ácido e absorção de minerais, como zinco, cálcio, magnésio e ferro. A baixa biodisponibilidade dos minerais, como o ferro, explica a ausência de impacto da utilização da multimistura na redução dos índices de anemia carencial ferropriva.
  2. Limitações toxicológicas e antinutricionais: más condições sanitárias, alto grau de contaminação (coliformes fecais, Bacillus cereus etc), presença de aflatoxina (composto carcinogênico e altamente resistente à destruição pelo calor e tostagem), presença de glicosídeos cianogênicos (folha da mandioca), alta concentração de nitratos nas folhas, que na presença do pH gástrico convertem-se em nitritos, que são agentes carcinogênicos.
  3. Estudos em animais de experimentação não revelam benefícios com a utilização da multimistura no combate às carências nutricionais: a) Martins Bion F, Pessoa DCNP, Lapa MAG, Siqueira Campos FAC, Antunes NLM, Lopes SML. Uso de uma multimistura como suplementação alimentar: estudo em raros. Arch Latinoam Nutr 1997; 47: 242-7; b) Boaventura GT, Chiappini CCJ, Fernandes NRA, Oliveira EM. Avaliação da qualidade protéica de uma dieta estabelecida em Quissamã, Rio de Janeiro, adicionada ou não de multimistura e de pó de folha de mandioca. RevNutr, Campinas 2000; 13: 201-9; c)
  4. Estudos epidemiológicos e ensaios clínicos atuais que não mostram benefícios nutricionais com o uso da multimistura: a)Oliveira SMS, Costa MJC, Rivera MAM, Santos LMP, Ribeiro MLC, Soares GSF, Asciutti LS, Costa SFG. Impacto da multimistura no estado nutricional de pré-escolares matriculados em creches. Ver Nutr 2006; 19: 169-76; b) Gigante DP, Buchweitz M, Helbig E, Almeida AS, Araújo CL, Neuman NA, Victora C. Ensaio randomizado sobre o impacto da multimistura no estado nutricional de crianças atendidas em escolas de educação infantil. J Pediatr (Rio J) 2007; 83: 363-9; c) Sant’Ana LFR, Cruz ACRF, Franceschini SCC, Costa NMB. Efeito de uma multimistura alimentar no estado nutricional relativo ao ferro em pré-escolares. Rev Nutr 2006; 19:445-54.
  5. Questionamento ético:  qualquer programa de intervenção nutricional, especialmente em larga escala em crianças, só deveria ocorrer após clara demonstração de eficácia e segurança da multimistura, o que, a nosso ver inexiste.

Tendo em vista o exposto, e ainda a necessidade garantida por legislação própria quanto ao controle de qualidade de produtos destinados à alimentação humana, consideramos inapropriada a utilização da multimistura em programas de alimentação infantil e combate às carências nutricionais em larga escala, especialmente em programas emergenciais de combate à fome, que não devem ser baseados na utilização de sub-produtos industriais sem evidências de benefícios e com eficácia e segurança duvidosas, pelo simples fato de serem de baixo custo.

 

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